quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

20 anos de ausência

Faz hoje 20 anos, era um domingo ensolarado e, dentro do quarto, na casa que lutou para construir, o meu pai começou a agoniar. Os rins estavam a entrar em falência. Às 17h20 deu-se a libertação. Não vou entrar em mais detalhes...

Revivo quase diariamente as horas desse maldito domingo e, apesar da dor gigante de ter assistido a tudo, se há algo de bom que se possa retirar da experiência, é que ele não esteve sozinho. Nós, por outro lado, pudemos acompanhá-lo na profunda dor que ele sentia, porque além da componente física, excruciante, não partiu em paz. Estava frustrado, pois achava que não tinha cumprido tudo o que faltava para nos libertar de preocupações.

Foi a verdadeira confrontação com a finitude, um momento em que emergiram um nojo e ódio profundos pela vida e a perceção de que somos criaturas insignificantes perante a física, a química, a biologia. Antes desse acontecimento não vivia num mundo de purpurinas. A dor do silêncio transformou-me. Preparou-me para novos silêncios que se seguiram.

Não se supera.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

A ternura dos "entas"

Ontem completei mais uma translação ao Sol. A entrada nos "entas", iniciada em 2020, já está bem consolidada. Fui aprendendo com a vida a relativizar mais os acontecimentos, deixei de dar importância a pormenores que consumiam a minha beleza, a paciência para picuinhices reduziu drasticamente. Tenho esperança que ainda vou fazer umas coisas interessantes e sentir entusiasmo com novas descobertas.

Nos olhos começaram finalmente a aparecer algumas rugas acentuadas pelo sorriso, as madeixas brancas no cabelo vão multiplicando serenamente. As mazelas físicas mal resolvidas que foram surgindo ao longo dos anos dão por vezes sinais de vida, os problemas respiratórios diagnosticados logo na primeira consulta que tive, logo que nasci, vão voltando a acentuar-se, após um adormecimento aparente.

Quando era novinha, adorava ver e rever os álbuns fotográficos da família. Tenho algumas memórias registadas em suporte físico, maioritariamente tiradas quando vivia em França, onde revelar fotografias era mais acessível que em Portugal. Desde que me mudei para cá e até por volta dos 26 anos, parece que não existi. Da minha adolescência tenho umas apenas umas três fotografias tipo passe, por causa do cartão de estudante, dos tempos de universidade não tenho praticamente nada. Só quando comprei uma máquina fotográfica digital, penso que com 26 anos, é que voltei a ter registos. Apesar dos milhares de memórias estarem gravados em diversos suportes digitais, poucos são os que tomaram a forma de papel fotográfico. A diversidade e qualidade de imagem é imensa, comparativamente com os recursos limitados de que dispunha dantes, mas perdeu-se a magia da abertura de um álbum fotográfico, daquele barulho característico a virar cada página, do cuidado ao manipular as fotografias para não se estragarem. Fez ontem 43 anos que nasceu, algures em terras gaulesas, uma miúda com um ar assustador, toda arranhada na face, porque as suas mãozinhas não faziam outra coisa que não fosse desfazer a cara. Tenho uma cicatriz que se destaca na bochecha direita, feita por moi-même, no alto dos meus dois dias de idade. Durante muitos anos também se viam as que fiz no nariz, nesse mesmo dia, mas essas suavizaram depois dos 30 anos. Ainda atualmente, há alturas em que me apetece arrancar partes da cara, quando as alergias estão em alta. Há que manter a coerência!