terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Terráquea há 41 anos

Este planeta passou a sofrer ocupação da minha parte há 41 anos. Continuo em amadurecimento e espero não azedar com o passar dos anos.
A colheita de 80 tem umas notas de esquisitice, um travo a observação e um aroma analítico, o que a torna fora do normal.

O bebé que nasceu de rosto arranhado, porque vivia com permanente urticária, transformou-se num espécime sui generis, que se cansa de si mesmo. Viva o envelhecimento e o autoconceito!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Mudança de país em criança - a minha experiência

Desde muito pequena sou fascinada por gatos, não sei porquê. Quando ainda vivia fora do país deliciava-me a ver os gatinhos de uma senhora que vivia em frente ao meu prédio. Eu e a minha irmã perguntávamos muitas vezes à nossa mãe se quando viéssemos para Portugal iríamos ter um gato. Ela prometia-nos que sim, então a motivação para deixarmos a vida que conhecíamos para trás aumentava com a esperança de que íamos concretizar um sonho. No verão de 1988 deu-se a vinda para um país cuja língua compreendia e falava com alguma fluência mas que eu não sabia escrever. Recordo-me perfeitamente da primeira palavra que escrevi em português. A minha mãe estava a preparar as caixas para a mudança e ela identificava, por fora de cada uma, a categoria do conteúdo. Houve uma em que perguntou se queria que fosse eu a escrever: brinquedos. Não soletrou, esperou que com os conhecimentos que tinha de francês e a componente oral de português que eu dominava, chegasse à conclusão da forma como a palavra se escrevia e consegui. Esse momento marcou-me, talvez porque representou o início da despedida de uma vida que sabia desde sempre que seria provisória naquele local. França foi o país onde nasci e construí uma pequenina parte da minha essência. Ainda faço por preservar alguns costumes que me trazem uma sensação de um conforto que me remete a tempos que iriam deixar de existir. Estávamos restritos à nossa bolha familiar causada pela distância geográfica às raízes dos meus pais, embora tivesse também família a viver perto de nós, lá em França.

A vinda para cá foi uma espécie de Regresso ao Futuro mas ao contrário. A aldeia onde nos fixámos (no Minho), por exemplo, fica a uns escassos 3 km de uma freguesia de outro concelho onde a distribuição de eletricidade só começou a ser feita por volta de 1990. Lá na minha terrinha só havia uma estrada em alcatrão cujo troço tinha cerca de 700 m, o resto era em terra batida. Na escola primária os miúdos levavam "bolos" nas mãos com réguas de madeira grossa (nunca percebi o motivo para chamarem as reguadas de bolos), puxões de orelhas, vergastadas com canas de milho onde calhasse, chapadas na cara (daquelas em que a mão é lançada, vinda bem de trás). Na cataquese o padre batia com uma cana de milho se alguém olhasse para o lado. Havia vários costumes e crenças que não compreendia. Quando uma criança tinha uma dor num dente era normal colocar-lhe um algodão embebido em aguardente e mandá-la para a escola assim, logo pela manhã. O chocolate sabia-me a sabão, porque o que se vendia habitualmente cá era um sucedâneo. Vários dos produtos que eu consumia em França começaram a tornar-se populares por aqui, muitos anos depois de ter vindo. Com os desenhos animados era a mesma coisa. Após confrontar-me com a realidade portuguesa acabei por me adaptar, no entanto, causava-me confusão a importância que se dava a coisas que a meu ver eram totalmente descabidas, sem o mínimo de raciocínio crítico. Perceber que há quem tenha convicção que os piolhos surgem por geração espontânea ou por se comer a parte da castanha onde ela germina, continua a deixar-me incrédula.

Nunca tinha ouvido falar de bruxedos, maus olhados e de rituais para combater malfeitorias planeadas por terceiros, que envolvem sal, dentes de alho, patas de coelho, fitas vermelhas penduradas nos retrovisores dos carros e muitas outras coisas.

Sei que em todo o lado há crenças dos mais variados tipos, baseadas sabe-se lá em quê. O que está aqui a ser analisado é o ter recebido em tão pouco tempo, tanta informação diferente e acostumar-me a uma realidade distinta, que me parecia um retrocesso civilizacional.

Durante um ano fui conhecida na escola como a Patrícia Francesa. No ano seguinte deixei de o ser, porque passou a haver o Filipe Francês :) Muitas vezes na hora do recreio eu era o extraterrestre que estava ser descoberto pelos colegas e que servia de robô tradutor. Aquilo que mais ouvia era "como é que se diz... em francês?" As minhas coleguinhas de turma adoravam ver o material escolar que usava. Enquanto eu sentia que vivia num passado que não me era familiar onde nasci, elas viam em mim o futuro. Este contraste é muito interessante e representativo de algumas sensações que temos, por exemplo, quando viajamos.

Em pouco mais de um mês aprendi a escrever português. Devo-o a uma excelente professora que tive na 3.ª e 4 .ª classes. O primeiro texto que li para a turma era sobre a Covilhã, logo na primeira aula. Dei conta nessa altura que tinha dificuldade em dizer "lhã".

No início não percebia o que é que o pronome "lhe" fazia acoplado a um verbo, como no caso de "deu-lhe", então perguntei à minha professora que tinha algum conhecimento e interesse em francês, qual era a equivalência que tinha.

Não conseguia dizer em condições o nome Rui e uma prima ria-se à brava à conta disso. Tinha tendência para o pronunciar como se houvesse um acento tónico na letra i.

Aprendi muito sobre Portugal naqueles dois anos na primária e não me canso de dizer quão fabulosa foi aquela professora. Na mudança de país é habitual atrasar-se um ano na escola. Em condições normais deveria integrar a 3.ª classe mas fui inicialmente para a 2.ª. As professoras que tive eram medianas e não puxavam suficientemente por mim. Agiam como se estivesse no mesmo patamar dos meus colegas quando eu não tinha um conhecimento adequado da língua. A diretora da escola (responsável pela turma de 3.º ano) achou que a minha adaptação estava a ser rápida e beneficiaria mais se não atrasasse. No primeiro período estava na 2.ª classe, terminadas as férias de Natal passei para a 3.ª, que era a turma dela. Foi o melhor que me aconteceu, não tenho dúvida.

Nesse verão em que vim para Portugal, uma gata vadia que estava numa casa desabitada em frente àquela onde residia, teve filhotes. Eu e a minha irmã ficávamos agarradas à rede que a vedava a ver os pequenotes a brincar. Numa tarde, ambas fomos à casa de uma prima que vivia na vizinhança e, quando chegámos a casa, tínhamos uma surpresa. A nossa mãe apanhou o primeiro minorca que veio brincar com um pauzinho que ela começou a mexer, junto ao postigo onde se refugiavam. A promessa foi cumprida e a minha admiração por gatos tornou-se incomensurável.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Bizarro? Para mim, não.

Em 2009 uma estação de rádio de Guimarães promoveu o sorteio de um "Funeral de Sonho". Não faltaram candidatos e, se quisesse, o feliz contemplado poderia ceder o seu prémio a alguém (ainda vivo).

Alerto que o conteúdo deste post poderá ser creepy para alguns e quero, desde já, dizer que não há mensagens subliminares ou qualquer intenção da minha parte em atentar contra a minha vida. Estou muito bem, mesmo!

Diria que após a morte do meu pai e perante tudo o que aconteceu, desde o velório dentro de casa (durante dois dias) até ao momento sublime da missa do funeral em que me contive para não mandar calar a abécula (a criatura que exercia funções de sacerdote da terrinha) ou atirar-lhe um castiçal à testa, penso às vezes no meu "funeral de sonho". O meu pai dizia que queria ser enterrado no quintal e compreendo a perspetiva dele.

À semelhança do meu casamento, gostava que houvesse minimalismo. Não me sinto confortável com focos apontados a mim em vida, não será na morte que vou querer mediatismo. Desejo que ninguém tenha trabalho comigo depois de já cá não estar a azucrinar ninguém, logo a cremação é a melhor alternativa. Há muito que digo que a minha última residência vai ser num pote mas, pensando melhor, se for possível não ceder cinzas a familiares prefiro, para não terem de pensar o que fazer com elas. Ir para um cemitério vai também contra o meu ideal.

Se é para seguir num tapete rolante para o forno do tanatório, não é necessário um caixão todo rebuscado. NÃO QUERO uma cerimónia religiosa, bem como qualquer símbolo religioso! Acerca de flores, também dispenso. Se normalmente não consigo aguentar muito tempo no meio delas, há que manter-me fiel a mim mesma depois de apagar (ainda desato a espirrar ou a ficar cheia de congestão nasal). Roupa preta, desaprovo. Fiquei traumatizada de ver a minha mãe, anos a fio, a combinar preto com preto.

Quem quiser desrespeitar-me, é só fazer o contrário disto tudo. Não terá nenhuma consequência, porque não vou andar a assombrar ninguém. Olhando bem para a minha lista de exigências, pareço uma daquelas celebridades que quer um camarim com ar dos Himalaias, uma banheira com água do Kilimanjaro e 750 toalhas dobradas com orientação para norte.

Acerca da abécula que falei mais acima, dois anos depois do funeral tornei a estar numa missa presidida por sua excelência, numa situação profissional, noutra freguesia, porque não aguentou muito tempo na minha. Como a estupidez daquele ser é crónica, começou outra vez a fazer aquilo em que ele é melhor, que é ser um palerma. Saí porta fora, em plena missa, enquanto ele continuava com o seu sarcasmo a roçar a má formação, dirigido aos alvos daquele dia. Depois de mim, várias pessoas abandonaram a igreja, incrédulas com a boçalidade daquele energúmeno que viram pela primeira vez.

Se temos possibilidade de idealizar enquanto as nossas faculdades mentais estão boas, porque não? Há duas ou três pessoas a quem já partilhei para saberem o que fazer quando chegar a altura, se tiverem realmente intenção de ir de acordo com a minha vontade.