quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Mudança de país em criança - a minha experiência

Desde muito pequena sou fascinada por gatos, não sei porquê. Quando ainda vivia fora do país deliciava-me a ver os gatinhos de uma senhora que vivia em frente ao meu prédio. Eu e a minha irmã perguntávamos muitas vezes à nossa mãe se quando viéssemos para Portugal iríamos ter um gato. Ela prometia-nos que sim, então a motivação para deixarmos a vida que conhecíamos para trás aumentava com a esperança de que íamos concretizar um sonho. No verão de 1988 deu-se a vinda para um país cuja língua compreendia e falava com alguma fluência mas que eu não sabia escrever. Recordo-me perfeitamente da primeira palavra que escrevi em português. A minha mãe estava a preparar as caixas para a mudança e ela identificava, por fora de cada uma, a categoria do conteúdo. Houve uma em que perguntou se queria que fosse eu a escrever: brinquedos. Não soletrou, esperou que com os conhecimentos que tinha de francês e a componente oral de português que eu dominava, chegasse à conclusão da forma como a palavra se escrevia e consegui. Esse momento marcou-me, talvez porque representou o início da despedida de uma vida que sabia desde sempre que seria provisória naquele local. França foi o país onde nasci e construí uma pequenina parte da minha essência. Ainda faço por preservar alguns costumes que me trazem uma sensação de um conforto que me remete a tempos que iriam deixar de existir. Estávamos restritos à nossa bolha familiar causada pela distância geográfica às raízes dos meus pais, embora tivesse também família a viver perto de nós, lá em França.

A vinda para cá foi uma espécie de Regresso ao Futuro mas ao contrário. A aldeia onde nos fixámos (no Minho), por exemplo, fica a uns escassos 3 km de uma freguesia de outro concelho onde a distribuição de eletricidade só começou a ser feita por volta de 1990. Lá na minha terrinha só havia uma estrada em alcatrão cujo troço tinha cerca de 700 m, o resto era em terra batida. Na escola primária os miúdos levavam "bolos" nas mãos com réguas de madeira grossa (nunca percebi o motivo para chamarem as reguadas de bolos), puxões de orelhas, vergastadas com canas de milho onde calhasse, chapadas na cara (daquelas em que a mão é lançada, vinda bem de trás). Na cataquese o padre batia com uma cana de milho se alguém olhasse para o lado. Havia vários costumes e crenças que não compreendia. Quando uma criança tinha uma dor num dente era normal colocar-lhe um algodão embebido em aguardente e mandá-la para a escola assim, logo pela manhã. O chocolate sabia-me a sabão, porque o que se vendia habitualmente cá era um sucedâneo. Vários dos produtos que eu consumia em França começaram a tornar-se populares por aqui, muitos anos depois de ter vindo. Com os desenhos animados era a mesma coisa. Após confrontar-me com a realidade portuguesa acabei por me adaptar, no entanto, causava-me confusão a importância que se dava a coisas que a meu ver eram totalmente descabidas, sem o mínimo de raciocínio crítico. Perceber que há quem tenha convicção que os piolhos surgem por geração espontânea ou por se comer a parte da castanha onde ela germina, continua a deixar-me incrédula.

Nunca tinha ouvido falar de bruxedos, maus olhados e de rituais para combater malfeitorias planeadas por terceiros, que envolvem sal, dentes de alho, patas de coelho, fitas vermelhas penduradas nos retrovisores dos carros e muitas outras coisas.

Sei que em todo o lado há crenças dos mais variados tipos, baseadas sabe-se lá em quê. O que está aqui a ser analisado é o ter recebido em tão pouco tempo, tanta informação diferente e acostumar-me a uma realidade distinta, que me parecia um retrocesso civilizacional.

Durante um ano fui conhecida na escola como a Patrícia Francesa. No ano seguinte deixei de o ser, porque passou a haver o Filipe Francês :) Muitas vezes na hora do recreio eu era o extraterrestre que estava ser descoberto pelos colegas e que servia de robô tradutor. Aquilo que mais ouvia era "como é que se diz... em francês?" As minhas coleguinhas de turma adoravam ver o material escolar que usava. Enquanto eu sentia que vivia num passado que não me era familiar onde nasci, elas viam em mim o futuro. Este contraste é muito interessante e representativo de algumas sensações que temos, por exemplo, quando viajamos.

Em pouco mais de um mês aprendi a escrever português. Devo-o a uma excelente professora que tive na 3.ª e 4 .ª classes. O primeiro texto que li para a turma era sobre a Covilhã, logo na primeira aula. Dei conta nessa altura que tinha dificuldade em dizer "lhã".

No início não percebia o que é que o pronome "lhe" fazia acoplado a um verbo, como no caso de "deu-lhe", então perguntei à minha professora que tinha algum conhecimento e interesse em francês, qual era a equivalência que tinha.

Não conseguia dizer em condições o nome Rui e uma prima ria-se à brava à conta disso. Tinha tendência para o pronunciar como se houvesse um acento tónico na letra i.

Aprendi muito sobre Portugal naqueles dois anos na primária e não me canso de dizer quão fabulosa foi aquela professora. Na mudança de país é habitual atrasar-se um ano na escola. Em condições normais deveria integrar a 3.ª classe mas fui inicialmente para a 2.ª. As professoras que tive eram medianas e não puxavam suficientemente por mim. Agiam como se estivesse no mesmo patamar dos meus colegas quando eu não tinha um conhecimento adequado da língua. A diretora da escola (responsável pela turma de 3.º ano) achou que a minha adaptação estava a ser rápida e beneficiaria mais se não atrasasse. No primeiro período estava na 2.ª classe, terminadas as férias de Natal passei para a 3.ª, que era a turma dela. Foi o melhor que me aconteceu, não tenho dúvida.

Nesse verão em que vim para Portugal, uma gata vadia que estava numa casa desabitada em frente àquela onde residia, teve filhotes. Eu e a minha irmã ficávamos agarradas à rede que a vedava a ver os pequenotes a brincar. Numa tarde, ambas fomos à casa de uma prima que vivia na vizinhança e, quando chegámos a casa, tínhamos uma surpresa. A nossa mãe apanhou o primeiro minorca que veio brincar com um pauzinho que ela começou a mexer, junto ao postigo onde se refugiavam. A promessa foi cumprida e a minha admiração por gatos tornou-se incomensurável.

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